(Foto: Reprodução) |
No auge da repercussão de abusos sexuais sofridos por atletas da ginástica olímpica, que denunciaram à Justiça um ex-técnico da seleção brasileira da modalidade em abril, um outro caso que também envolve violência sexual no esporte era revelado à polícia. Desta vez, o abuso foi no futebol. As denúncias, porém, vinha ocorrendo sem holofotes.
Depois de guardar o segredo por oito anos, um jovem jogador de futebol, que não quis ter seu nome revelado na reportagem exibida neste domingo pelo Esporte Espetacular, decidiu denunciar à polícia de São Paulo a tentativa de abuso sofrida quando tinha apenas 13 anos. O autor, segundo ele, foi Ricardo Crivelli, conhecido como Lica, então olheiro do Santos. Hoje, ele exerce o cargo de coordenador das categorias de base do time da Vila.
No depoimento, João, como vamos chamar o jogador, contou que atuava pelo América-MG e havia ido a São Paulo a pedido de seu então empresário, Luciano Pereira Nunes, para assinar alguns documentos. Durante alguns dias, ele ficou hospedado em um alojamento onde estavam outros meninos cujas carreiras eram direcionadas pelo mesmo agente, na capital paulista. Foi ali que, segundo João, ocorreu a tentativa de abuso. Era noite, ele e outros meninos, também jogadores de futebol, dormiam em um quarto grande. De repente, foi acordado por um toque de Lica, homem que nunca vira antes.
- Estava dormindo. Ele veio chegando aos poucos, veio passando a mão, pegou na parte íntima. Daí eu saí fora. Não deixei. Eu virei. Nunca fiz esse tipo de coisa. Ele se assustou porque eu não dei brecha. Daí ele saiu e foi para a cama do outro amigo que estava comigo - contou.
Mesmo após tantos anos, a vergonha e as lembranças daquela noite não deixam o menino em paz. Antes de contar à polícia só "ele e Deus" sabiam do ocorrido. A decisão para denunciar o ato, conta, foi tomada após acompanhar a repercussão midiática do caso de seu colega de quarto, Ruan Petrick. João continua tentando a sorte no futebol.
Atualmente, joga profissionalmente por uma equipe do estado de São Paulo. Realidade diferente de Ruan Petrick que, após denunciar seu algoz, perdeu a oportunidade de jogar no Santos pela segunda vez.
- Eu não tive coragem de dizer não e aí ele abusou de mim. Fez sexo oral e tudo. Quando acordamos, ele já não estava lá. Você é uma criança de dez anos de idade, sua primeira relação é com um cara, você acha que não vai ficar na mente sempre? - afirmou Ruan.
Na noite do ocorrido, Ruan estava alojado na casa de Luciano com o objetivo de fazer testes em clubes de São Paulo. Depois do abuso, Ruan chegou a atuar pelo Santos por um período, mas foi dispensado. Em seguida, teve oportunidades passageiras em outros clubes do país e, neste ano, tentou retornar ao Santos. Mas, ao se deparar com o agressor, que desta vez ocupava o cargo de coordenador do clube, decidiu ir à polícia.
Ao ser iniciada a investigação, o presidente do Santos, José Carlos Peres, afastou Lica do cargo. Os dois, porém, mantinham uma relação que ia além do clube. Desde 2005, eram sócios da Saga Talent Sports & Marketing LTDA., empresa focada em agenciamento de jogadores. Mas a sociedade foi desfeita assim que os casos vieram à tona.
Procurada pela reportagem, a defesa de Lica negou que ele tenha praticado os crimes denunciados pelos jogadores.
- Lica nega veementemente e tem documentos que provam veementemente que é inocente. Ele tem 25 anos de trabalho no futebol e nunca teve nenhuma reclamação contra ele. - disse o advogado Adriano Vanni.
Por e-mail, a assessoria do Santos confirmou que Peres e Lica tiveram uma sociedade. O clube, no entanto, reforçou que Lica foi afastado tão logo se iniciou a investigação do caso.
- O Santos FC é reconhecido internacionalmente por seu consistente trabalho com a base, que sempre apresentou resultados bastante elevados, tanto esportivos quanto de cidadania.O clube contribui plenamente para as investigações em andamento desde seu início e, reitera, que estas seguem em segredo de justiça - disse o Santos em nota.
Ruan afirma que foi incentivado a denunciar Lica por seu empresário, Luciano Nunes Pereira, conhecido como Luciano Belém. Há cerca de 10 anos ele trabalha recrutando jovens jogadores para testes em clubes paulistas. O agente, que já representava o menino à época dos abusos, afirma que só agora soube do caso. Ruan aponta a casa de Luciano como o local onde ocorreram os abusos.
- Ele falou: eu quero soltar a minha voz, tem algo preso dentro de mim, um peso nas minhas costas. Um caso assim no alojamento é uma fato que a gente não espera, mas quando acontece a gente sabe que acontece em todos os lugares - disse Luciano.
Durante a apuração, a reportagem encontrou uma denúncia do Ministério Público de São Paulo contra Luciano. Ele foi enquadrado no artigo 218-B do Código Penal, que se refere à favorecimento à prostituição e exploração sexual de vulnerável.
De acordo com o MP, o episódio ocorreu em 2010 e a vítima foi um garoto de 13 anos que buscava uma vaga no São Bernardo, clube de base do ABC Paulista. Ainda de acordo com a denúncia, Luciano exigia que o menino mantivesse relações sexuais com ele como condição para levá-lo ao clube. Luciano nega as acusações e afirma não conhecer a vítima.
- Esse jogador nunca nem esteve comigo. Eu espero que ele prove, comprove, dessa parte eu não estava sabendo - defendeu-se Luciano.
A trama que é apurada por promotores de São Paulo e do Pará aponta para outros personagens. Luciano Belém é amigo de Ronildo Borges, conhecido como Batata, que também buscava jogadores no Pará e os levava a São Paulo para realizar testes.
Em 2016, Batata foi preso em flagrante e condenado a 10 anos de prisão por crime de cárcere privado, estelionato e constrangimento de menor. Ele cumpre pena em Guarulhos, na grande São Paulo. De acordo com a Polícia Civil de São Paulo, no momento da detenção, foram encontrados dez atletas em um alojamento mantido em condições precárias.
Em uma espécie de festa, as crianças e adolescentes vestiam lingerie enquanto se exibiam para Batata. Além da denúncia contra Lica, Ruan Petrick acusou Batata à polícia. De acordo com o jogador, antes do episódio com o olheiro do Santos, ele havia sofrido abusos sexuais de Batata quando tentava fazer testes para a Portuguesa Santista.
Em razão da quantidade de casos no Pará, sobretudo na cidade de Marabá, no sudeste do estado, a reportagem foi até a região para investigar de que maneira as crianças eram atraídas para São Paulo. Durante a apuração, foi encontrado um outro homem, chamado Ubiratan Ramos, o Bira, cujo o método de ação no futebol era parecido com o dos acusados acima, de acordo com o Ministério Público do Pará. Todos eles, inclusive, se conheciam embora não atuassem, necessariamente, juntos. Em 2016, Bira foi condenado a 26 anos de prisão por crimes de abuso sexual de menores e pedofilia. Tentamos contato com a defesa de Bira que não retornou os pedidos.
Bira era uma figura bastante popular em Marabá e comandava uma das principais escolinhas de futebol da cidade. Hoje, o local tem nova administração, conduzida por pais dos alunos e vigiada de perto pela Justiça. A escolinha funciona em um galpão na periferia de Marabá. Ali tem um campo de grama sintética, um pouco maior que uma quadra de futsal. Atrás de um dos gols estão organizados troféus de campeonatos vencidos pela equipe e fotos de homenagens de jogadores revelados ali, como o atacante Elkeson, que jogou no Botafogo e chegou a ser convocado para a Seleção Brasileira, e Pará, lateral-direito do Flamengo.
Mas nem todos que passaram por ali têm boas histórias para contar. Após a prisão de Bira Ramos, alguns jovens decidiram ir até a polícia e denunciar abusos que, até então, haviam guardado em segredo. Sob condição de anonimato, ouvimos duas vítimas de Bira.
- Ele chamava: "Tal, vem aqui". Aí a gente ia sentava na perna dele. A partir daí ele ficava acariciando a gente, beijando a gente no pescoço e perguntando se a gente queria ser jogador...Ele mandava a gente lá para dentro, botava um lenço na nossa cara e fazia lá as coisas. Fazia sexo oral na gente - disse a pessoa que vamos identificar por X.
A outra vítima, que chamaremos de Y, lamenta ter caído numa armadilha.
- Tinha um preço, e o preço era esse, tinha que passar por ele e dormir na casa dele. Em busca de um sonho a gente acabou caindo em uma cilada - contou.
De acordo com o MP, os casos de abuso de sexual ainda são subnotificados. Muitas vítimas têm vergonha de relatar às autoridades a violência que sofreram.
- Não se pode negar é que, com certeza, o número de vítimas que nós temos efetivamente identificadas nos processos já apurados e em apuração está muito aquém do número realmente de vítimas que sofreram esse tipo de abuso - explicou a promotora do MPPA Alexssandra Mardegan.
Globo Esporte
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