Refém das barrabravas, futebol argentino padece e expõe semelhanças com o Brasil

Futebol argentino tem sido marcado por violência entre torcedores rivais

Futebol argentino tem sido marcado por violência entre torcedores rivais

Durante uma partida de futebol, cem torcedores entram no estádio com um caixão com um morto dentro. Disparam para o alto, perto de um dos gols, e se retiram. A cena foi registrada no início do mês no estádio do Quilmes, província de Buenos Aires, durante um amistoso entre reservas da equipe e um time do interior. O estranho fato faria parte de uma espécie de ritual de uma torcida organizada local para homenagear o filho de um ex-membro do grupo, morto em uma perseguição policial.

O episódio ilustra o poder e a impunidade das barrabravas, torcidas organizadas da Argentina que tumultuam e desestabilizam o futebol local. Os casos de violência são quase que semanais e incluem agressões e ameaças a jogadores, dirigentes dos clubes e juízes, tráfico e consumo de drogas nas imediações e dentro do estádio, quebra-quebras, brigas nas ruas, invasões de campo e, obviamente, muitas vítimas entre torcedores comuns.

Às vésperas da volta do chamado “superclássico” entre River Plate e Boca Juniors (a partida não foi disputada na última edição do Torneio Clausura porque o River estava na série B), hoje (28) às 15h30 no Estádio Monumental de Nuñez, as atenções no mundo da bola também estão voltadas para as arquibancadas e as ruas, territórios de confrontos muito mais agressivos que o campo de jogo. O esquema de segurança contará com 1.200 policiais, fora agentes privados contratados pelos clubes.

A ONG argentina Salvemos al Fútbol contabiliza 270 mortes no futebol nacional desde 1922, em decorrência de episódios violentos. O superclássico soma 12 deles, além das 71 pessoas que morreram asfixiadas ou esmagadas em 1968 no episódio conhecido como Puerta 12, quando, ao se depararem com uma das portas do estádio do River fechadas na saída, dezenas de torcedores não tiveram como voltar nem avisar aos demais que desciam as escadas.

Até hoje não há um culpado formal e, embora diferente dos casos de violência das barras, o fato ilustra as deficiências dos clubes e do Estado para manejar o esporte mais popular do país. A lógica de funcionamento dessas torcidas tem muitas semelhanças com o contexto brasileiro, mas conserva diferenças importantes, que atestam que no país vizinho o espectro de influência das barras se estende à Justiça, à polícia e até ao governo nacional.

Rafael Di Zeo, ex-chefe da La 12, barra do Boca Juniors, é um homem de negócios. Trabalha como lobista para um escritório de advocacia cujo nome não revela por ser de um conhecido profissional argentino. Seu objetivo é vencer as eleições para a presidência do clube em 2015, perspectiva que não parece nada impossível dada sua popularidade. Em uma entrevista de cerca de uma hora em um café em plena Avenida 9 de Julho, no Centro de Buenos Aires, ele é cumprimentado por vários amigos/torcedores.

“Me envolvi com a barra porque não gostava de algumas coisas que aconteciam com as pessoas comuns nos estádios. Elas eram maltratadas, roubadas...”, justifica. Ano passado Di Zeo saiu da cadeia após cumprir pena de quatro anos por agressão a torcedores do Chacarita em um amistoso com o Boca, no Estádio La Bombonera (sede do clube), em 1999. Quatorze pessoas ficaram feridas.

Política na arquibancada

Os tentáculos das barras estão infiltrados em vários segmentos do país. Na Copa de 2010, simpatizantes do governo nacional ajudaram a criar a ONG Hinchadas Unidas Argentina e houve suspeitas de financiamento oficial ao grupo de mais de 100 membros de barras que foi à África do Sul (alguns deles no mesmo voo que a seleção nacional).

“O governo os quer por perto, pois comparecem às marchas e levam faixas de apoio”, afirma Raúl Gámez, ex-presidente do Vélez Sarsfield e ex-barra. Ele conseguiu manter o clube relativamente seguro e afastado do tráfico de drogas (manejado por estes torcedores) durante sua administração, mas para isso teve de fazer concessões, como distribuir ingressos e financiar transporte para jogos.

Sete anos após o fim de sua administração, ele faz uma mea-culpa: “Hoje não faria mais isso. Se distribuo 100 entradas a um membro da barra, ele adquire um poder muito grande para manejar este grupo. Eu me aproximava para não sofrer males maiores. Havia pressão, mas eu suportava e claudicava”.

Opositor de Cristina Kirchner, o chefe de governo da cidade de Buenos Aires (equivalente ao prefeito), Mauricio Macri, com quem Di Zeo diz ter uma boa relação, foi presidente do Boca Juniors entre 1995 e 2007. Mónica Nizzardo, fundadora da ONG Salvemos al Fútbol, afirma que o nome de Macri está em vários processos na Justiça por suspeitas de corrupção em seu relacionamento com a barra, mas que, desde que assumiu a Chefia de Governo, tudo está parado.

Ela lembra ainda que Aníbal Fernandez, presidente do Quilmes, também era chefe de Gabinete dos Ministros do governo nacional em 2009, quando a TV Pública comprou os direitos de transmissão das partidas (projeto denominado Fútbol Para Todos), antes transmitidas por canais a cabo e pay-per-view.

“O Aníbal Fernandez estava dos dois lados, pois também era da direção da Associação do Futebol Argentino (AFA). Mais ilegal que isso... Com o Fútbol Para Todos o governo dá dinheiro de todos os cidadãos à AFA. E não é dinheiro para reparar os estragos de um tsunami, mas para pagar dívidas de más administrações”, analisa Mónica.

Di Zeo afirma que há relações entre as barras e o governo nacional desde a volta da democracia, em 1983, após a última ditadura militar: “Eu gosto da presidenta porque ela tem o que falta a alguns homens. E tem caráter também. Quem não fez isso? O que ocorre é que antes não estava tão claro”.

Na presidência da AFA há 33 anos, Julio Grondona é uma versão argentina de Ricardo Teixeira. Envolvido em várias denúncias de corrupção, ele foi reeleito oito vezes praticamente sem opositores. Sob sua presidência, o país conquistou seus dois títulos mundiais. “Os dirigentes têm medo de Grondona, porque ele controla o dinheiro e mantém os clubes pobres. Há uma máfia instalada na AFA. É um sujeito sem escrúpulos, que causa muitos danos ao futebol argentino”, opina o ex-presidente do Vélez.

No início do mês, o Independiente, considerado um dos cinco grandes do futebol argentino, declarou ter uma dívida de 330 milhões de pesos (cerca de R$ 139 milhões). Desde o início do ano, o clube está sob a chancela de Javier Cantero, cuja principal bandeira é fechar as portas da instituição para as barras.

Em junho, câmeras de televisão registraram uma discussão entre ele e o chefe da principal torcida do time, Pablo “Bebote” Alvarez, que o chamou de mentiroso, enquanto Cantero o acusava de roubar dinheiro do clube. Dois meses depois, uma bomba estourou na sede do Independiente e feriu um policial.

Omissão e violência da polícia agravam conflitos

Outra parte importante do problema é a polícia. Neste ponto há semelhanças e diferenças com o caso brasileiro. Além dos agentes públicos, a segurança nos jogos fica a cargo de empresas privadas contratadas pelos clubes, de acordo com o que acham ser necessário. E com o que querem gastar.

Antes dos jogos, como ocorre em alguns clássicos interestaduais, patrulhas escoltam ônibus das barras para evitar o encontro de rivais. Mas a proteção tem limites. “Fazem custódia de ônibus que estão cheios de drogas e armas, sem revistar ninguém. A polícia não é parte da solução, mas do problema”, afirma Mónica.

O consultor de sistemas Lucas Hoch conta que em um dos clássicos entre River e Boca, no Monumental, uma das entradas principais foi fechada para a chegada dos ônibus das barras, o que causou confusão e quase um quebra-quebra entre os demais torcedores. “A porta principal fica para eles e o resto que se dane. Há três ou quatro barreiras policiais para torcedores comuns, mas para os ônibus nada. Neste dia acumulou tanta gente, que as pessoas pularam as roletas”, relata.

A combinação entre a ineficiência da polícia e popularidade de membros das barras, sobretudo em bairros mais pobres, assemelha os capos das torcidas às figuras dos traficantes em várias favelas de metrópoles brasileiras. “Muitos torcedores comuns dizem que se sentem mais protegidos pelos barras que pela polícia”, afirma Mónica.

Imagens de violência policial ou mesmo da ausência de agentes durante os confrontos nos estádios (o que também permite invasões de campo com frequência) também ajudam a explicar a falta de confiança na instituição e estabelecem outras semelhanças com nosso país.

Tal como acontece no entorno de grandes estádios do Brasil em dias de jogos, flanelinhas (conhecidos como trapitos) cobram valores exorbitantes de motoristas pelo estacionamento e, assim como muitos agentes brasileiros, policiais argentinos assistem a tudo de braços cruzados.

“O dinheiro vai diretamente para as barras. Isso não poderia funcionar se a delegacia da área não soubesse. Além disso, eles conhecem os pontos de vendas de drogas, que também são controlados por membros de barras”, diz Mónica.

Celeiro de alguns dos melhores jogadores do mundo – e terra do maior craque dos últimos anos, Lionel Messi – a Argentina padece diante de uma questão que abrange muitos setores e que não sinaliza qualquer horizonte alentador.

“Estou convencida que não vamos salvar ninguém com o Salvemos al Fútbol. É uma luta muito frustrante. Todos os processos param na Justiça, as pessoas têm medo de falar... Não posso dizer que estou contente com o que faço. Quero ao menos denunciar, pressionar e comprometer cada setor com sua responsabilidade”, afirma Mônica Nizzardo, quase jogando a toalha.

A rede de relações e consequências da violência das barras mostra como as semelhanças entre Brasil e Argentina são muito mais fortes que a folclórica rivalidade. “Sou conhecido no Brasil? Um dia estava no Maracanã e um torcedor veio falar comigo, com uma revista com minha foto”, conta Rafael Di Zeo. Amigo de membros de torcidas organizadas do Flamengo, Corinthians e Vasco, e com primos em Brasília, ele estará na Copa de 2014.

UOL Esporte

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